sábado, 7 de fevereiro de 2015

O fim do sonho angolano (agora pesadelo)







A queda drástica do preço do petróleo está a deixar Angola em graves dificuldades financeiras, pondo em risco os cerca de 200 mil portugueses que lá vivem e milhares de empresas nacionais que exportam para aquele país africano. As dificuldades não começaram agora, mas desta vez poucos duvidam de que estamos a assistir ao fim do El Dorado angolano.
Angola já não é o que era - e pelo caminho Tiago Sousa passou de imprescindível a indesejado. Ao fim de seis anos a trabalhar nos casinos de Angola, o profissional de marketing, de 39 anos, não aguentou mais as dificuldades crescentes na renovação dos vistos, os aumentos salariais a transitarem de generosos para irrisórios, a imposição de regras cada vez mais restritas e avulsas na empresa, as notícias sobre portugueses assassinados e a rarefação do dólar, trocado por um kwanza praticamente inútil entre imigrantes.
"O aumento de mão de obra qualificada barata acabou por se refletir nas condições de trabalho dos portugueses que já estavam em Angola", diz. "Era normal termos aumentos anuais consideráveis, que se foram tornando marginais, nos últimos anos. Também os tempos de espera dos vistos aumentaram, e nos últimos dois anos deixou de ser possível renová-los sem sair do território. Outra alteração que motivou a minha saída foi a 'desdolarização' levada a cabo pelo executivo angolano, sendo que os expatriados passaram a receber em kwanzas." A tudo isto, continua, "junta-se o problema de falta de divisas no mercado angolano, inviabilizando a transferência de valores provenientes de salários ou negócios."
Uma situação já de si hostil poderá tornar-se catastrófica para os imigrantes portugueses. O petróleo, que caiu drasticamente nos últimos meses para os 45 dólares o barril, é a base da economia angolana: representa 43% do PIB, 98% das exportações e 72% das receitas do Estado. O Presidente angolano ordenou, entretanto, que se fizesse um orçamento retificativo a partir de um preço por barril de 40 dólares, em vez dos 81 dólares orçamentados para 2015, o que implica cortes nas despesas de 14 mil milhões de dólares (12,3 milhões de euros). Outra medida em cima da mesa é a introdução de quotas às importações, limitando a entrada de produtos básicos cuja produção nacional cubra 60% das necessidades, como cerveja e produtos hortícolas, o que deixará em maus lençóis muitas das nove mil empresas portuguesas que exportam para Angola.
Por tudo isto, Tiago Sousa assegura que não podia estar mais satisfeito por ter saído, em novembro. "Amigos meus que continuam em Angola estão preocupados com as recentes notícias sobre uma política de austeridade no país, com o aumento do preço da gasolina (quando saí, o preço de um litro estava a 60 kwanzas, e ainda esta semana subirá para 120 kwanzas) e com as repercussões que tudo isso possa ter na população em geral. Prevê-se desemprego e convulsões sociais." Que os portugueses - imigrantes e não só - serão dolorosamente afetados, ninguém duvida. Mas quão profunda será a ferida?
O peso da construção portuguesa
O setor mais dependente de Angola, e portanto o mais vulnerável à recessão, é a construção civil. Depois da hecatombe provocada pela crise em Portugal, com milhares de falências e de trabalhadores no desemprego, os construtores encontraram no país de José Eduardo dos Santos o paraíso das obras. Angola é o principal mercado externo, com um peso de 38% do total da internacionalização e um volume de negócios de dois mil milhões de euros.
São das grandes empresas portuguesas as obras emblemáticas da capital: a requalificação da baía de Luanda (Mota-Engil e Soares da Costa) e a nova sede da Assembleia Nacional (Teixeira Duarte) são dois exemplos. A Mota-Engil África, subsidiária da Mota-Engil, que representa 47% do volume de negócios do grupo, estreou-se recentemente em bolsa e já está a perder. Metade da empresa chegou a desaparecer, com uma queda acumulada de 50%, em dezembro, devido ao preço de petróleo, que põe em causa novas empreitadas em Angola.
Mas as grandes já estão em muitos outros mercados, embora Angola seja o principal. O problema são as PME. "Atualmente, as empresas portuguesas estão em atividade com projetos que já estavam iniciados. Daqui para a frente é que poderá não haver reposição de trabalhos e alguns projetos poderão ser adiados ou suspensos. Tudo vai depender da longevidade deste ciclo do petróleo", refere Ricardo Pedrosa Gomes, presidente da AECOPS, associação do setor.
Este responsável descreve um tecido empresarial com muitas empresas portuguesas de média dimensão que, além de serem subcontratadas pelas grandes, têm também as suas obras mais nas províncias. As que são fabricantes (de caixilharia, tintas, argamassa ou tijolos, por exemplo) têm mais facilidade em adaptar-se às condições do mercado. "As outras podem ser mais prejudicadas e afetadas pelo desemprego. Ou então poderão ser levadas pelas grandes para outras paragens", refere.
Quanto aos trabalhadores... "Os entraves à contratação de portugueses para trabalhar em Angola não são de agora. A vaga de emigração estancou, até porque sai mais barato contratar angolanos. E estes estão agora mais qualificados. Aliás, é prática das empresas portuguesas terem centros de formação profissional para os locais", conclui.
Outros tempos, outros salários
Com estas mudanças, os ordenados, que podiam atingir os cinco dígitos, caíram para valores mundanos, tendo em conta o altíssimo custo de vida em Luanda. No início da vaga da imigração, um engenheiro auferia seis a dez mil euros por mês; nos últimos anos, vai para lá por pouco mais de 2500. Muitos dos que hoje se mudam para Angola já não vão à procura de enriquecer, mas apenas de alternativas para pagarem as contas em Portugal.
O recém-regressado Manuel Barros (nome fictício, a seu pedido, como outros neste texto, por a empresa em que trabalha continuar ligada a Angola) confirma o tombo dos salários. "Os portugueses que chegaram até 2010, 2011, ainda conseguiram valores altos. Quem entrou depois disso, ficou a ganhar menos de metade do que quem lá estava." O engenheiro civil, que viveu cinco anos em Angola, começou a pensar seriamente em abandonar o país no final do primeiro semestre de 2014. "Antes da queda do petróleo, já havia pagamentos em fortíssimo atraso na construção."
O problema, explica, é o setor assentar na edificação em Luanda, "onde a oferta já está a superar a capacidade de aquisição" - o fantasma da bolha imobiliária começa a amedrontar quem vive do cimento. "Não há classe média, ou pelo menos classe média que consiga comprar aqueles apartamentos. Muita coisa está por comprar, ou foi comprada para arrendar, mas ninguém arrenda."
A bolha imobiliária é justamente um dos receios para o pior cenário possível. Se rebentar, se não houver dinheiro para comprar os empreendimentos, os promotores não têm retorno do investimento, podem entrar em incumprimento de crédito e os bancos serão arrastados na avalancha. Quais bancos? Os angolanos, mas provavelmente também os portugueses que lá se encontram: Caixa Geral de Depósitos, BPI, Millennium...
O setor bancário é, aliás, onde os sinais de uma economia sob pressão são mais fortes. "Não conseguimos tirar dinheiro de Angola", diz Cristóvão Martins, administrador de uma empresa de consultoria informática. "Envio pessoas para lá, mas depois não consigo que eles transfiram dinheiro para eu lhes pagar. O BNA [Banco Nacional de Angola] terá dado indicações para não deixarem sair dólares. Temos de justificar as transferências através de faturas. E mesmo com autorização do BNA, se o banco não tem dólares nem euros, não pode pagar." Esse é o busílis: com a queda do preço do petróleo para menos de metade, entram agora muito menos divisas fortes no país. Por causa disso, as autoridades locais impõem tantas restrições ao uso de moeda estrangeira.
Mas da necessidade nasce a oportunidade. Apesar do vendaval económico que a queda do preço do petróleo está a provocar, os analistas veem aqui uma oportunidade para que Angola diversifique a sua economia. Além do petróleo, os diamantes têm um peso considerável, mas também a agricultura tem vindo a crescer, representando já 12% do PIB. Por outro lado, esta aposta de Angola na produção nacional é mais uma má notícia para Portugal.
Mercadorias bloqueadas
O setor alimentar será precisamente dos mais afetados com as limitações às importações (ver infografia). É já a pensar no pior que o dono de uma pequena e média empresa da área de Lisboa, que se dedica à exportação de bebidas e alimentos em exclusivo para Angola, começa a olhar para outros mercados. "Ou então viro-me para outro segmento, como os medicamentos, uma vez que Angola não produz e, em princípio, não irá limitar a importação desse produto. Mas as regras ainda não estão definidas", diz, preferindo manter o anonimato. O facto é que o empresário já sentiu uma diminuição das compras. "Desde o início de janeiro que os compradores estão parados porque não há garantia de compra de divisas. A partir de agora, sem garantia de pagamento, não vale a pena colocar lá mais mercadoria."
Angola é o quarto destino das exportações portuguesas, não só de bens mas de serviços, como as viagens e turismo ou os transportes. Esta semana, a TAP decidiu suspender a venda de bilhetes em Angola para quem quer adquirir uma viagem Lisboa-Luanda. Nesse caso, o bilhete tem de ser comprado em Portugal. Isto porque, diz a empresa, há escassez de dólares em Angola e limitações à transferência de capital para fora do país. No final do ano passado, noticiou o jornal Público, a transportadora chegou a ter 30 milhões de euros retidos em Angola.
O refreamento da entrada de produtos estrangeiros está também a desesperar os imigrantes portugueses que dependem da existência de stock em Angola. É essa a razão que leva Joaquim, responsável pelo marketing de uma multinacional de retalho, a mostrar-se preocupado com a evolução da economia angolana. "As empresas que importam estão com mercadorias bloqueadas pelos fornecedores porque os bancos estão a demorar muito a fazer as transferências, apesar de termos dado ordem de pagamento", conta. Com o vencimento habitualmente pago em dólares, vê-se numa situação semelhante à de muitos outros compatriotas que acumulam salários em atraso, tendo em conta a demora dos bancos. Chegado a Luanda há quatro anos, depois de ter ficado desempregado em Portugal, Joaquim pensa agora em mudar-se para outro país. "Existe um desconforto geral, quer ao nível das empresas quer ao nível das pessoas, pois nem uns nem outros estão a conseguir ter divisas. É a loucura."
Caso se concretize a desvalorização do kwanza, que está a ser comentada em surdina, o gestor acredita que vão fechar muitas empresas. "Principalmente as que importam e que veem as suas dívidas a aumentarem na proporção de desvalorização do kwanza." Desde que os problemas se agudizaram que começaram os despedimentos. "Já há muitas pessoas a serem despedidas, e tudo pode mudar, a começar pela segurança, caso as empresas comecem a cortar postos de trabalho entre as classes mais baixas", antecipa.
Efeito dominó?
Para José de Noronha Brandão, a segurança é, de facto, o grande espinho encravado na pele de Angola. "Sempre que venho a Portugal, dou valor ao facto de deixar o carro estacionado a 100 metros de distância e poder regressar sozinho. Lá não o faço." De resto, afiança o diretor de relações públicas da agência Zwela (cargo que, nos últimos dois anos, o obriga a um contínuo vaivém entre Lisboa e Luanda), a vida continua, ainda que com algumas diferenças. "Acabaram-se os grandes salários. As condições oferecidas estão a baixar mas continua a existir muito trabalho." E, mesmo com os contratos a obrigarem os estrangeiros a trabalhar em Angola a darem formação aos colegas locais, este défice vai sentir-se seguramente por mais uma ou duas gerações, acredita. Em vésperas de regressar a Luanda, José tem acompanhado a situação na capital angolana. "Conheço duas pessoas que estão a pensar vir embora. Mas é sobretudo porque estão saturadas."
Mas, por cada otimista, há dois realistas. Maria (nome fictício), gestora de uma empresa europeia de têxteis de luxo, traça um retrato bem mais feio. "Existem contentores de comida no porto que não são desembargados porque o cliente não paga e o fornecedor não entrega os papéis para descarregar a mercadoria", diz. Os que recebem em kwanzas estão em pior situação, porque têm de ir para a fila das casas de câmbio para tentar mandar dinheiro para Portugal. Se o fizerem por transferência bancária, o banco não assegura o tempo que demora (e pode levar dois ou três meses). Quem recebe em euros não tem tido dificuldades até ao momento, mas a situação corre o risco de mudar a qualquer momento.
A empresa de Maria tem contratos com o Estado. Por isso, caso exista um corte nestas compras, o efeito dominó pode ser devastador. A luso-angolana explica que só está disposta a esperar seis meses até que a situação normalize. Caso contrário, volta a fazer as malas. Para onde? "Dubai, Noruega ou Austrália. Existem sítios mais agradáveis para se viver..."
É o fim de um ciclo. Mário (nome fictício), consultor fiscal numa auditora multinacional, conta que, nos oito anos de vida que já leva em Angola, esta não é a primeira vez que assiste às restrições de circulação dos dólares. Mas há indícios de que alguma coisa mais estrutural, mais violenta, mais definitiva, está em andamento. "As dificuldades começaram em dezembro, mas agora pioraram. Antes, conseguíamos levantar 200 dólares por dia com o cartão de crédito, agora só 60." A escassez dos dólares também lhe trouxe dois meses de salários em atraso. "Todos os dias, a minha mulher leva 60 euros e depois vai-me depositando na conta de Angola. Mas do meu salário ainda tenho de pagar as contas da família em Portugal." E tudo será ainda mais complicado quando as empresas deixarem de conseguir pagar as importações de bens de primeira necessidade como alimentação e medicamentos. "Sei de uma petrolífera em que 200 trabalhadores foram de férias de Natal e já não vão regressar."
Quem pode, diz, começa a tentar ir para Moçambique. Nota-se também menos portugueses a chegar nos últimos tempos. "Tenho um plano B, estou a tentar mudar-me para outra empresa com negócios no Gabão, Guiné Equatorial e Moçambique. Mas acredito que 90% dos portugueses que aqui estão não têm um plano alternativo nem forma de se sustentar em Portugal."
A resposta que todos tentam agora encontrar é saber qual é a próxima Angola. O próximo El Dorado. Mas a verdadeira pergunta é outra: haverá mais algum El Dorado?
Um tesouro chamado dólar
"As casas de câmbio atendem durante uma hora e depois acabam-se os dólares. As filas em Luanda começam à meia-noite, quando as casas de câmbio só abrem às dez da manhã. ?É uma loucura", descreve Maria, gestora em Angola. Nas últimas semanas, a corrida aos dólares, trancados pelo Banco Nacional, assumiu proporções gigantescas. Nos bancos, um dólar vale 105 kwanzas. Mas como os bancos deixaram de aceitar o câmbio, as quinguilas, as mulheres que vendem os dólares nas ruas, desesperam para arranjar as notas norte-americanas. Nem o mercado negro consegue dar conta do recado. Quem as consegue arranjar, encontra os dólares por 170 kwanzas. Uma disparidade, quando há umas semanas se conseguia o câmbio paralelo por uns 100 kwanzas. Em Portugal, as casas de câmbio como a Novacâmbios deixaram de aceitar kwanzas, porque "não conseguimos vender kwanzas ao BIC, o único banco em Portugal autorizado a exportar esta moeda", conta João Rocha, administrador da Novacâmbios.
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