sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Não somos Charlie, queremos ser





Para obrigar a professora a não usar saia, os alunos muçulmanos escarravam nas suas pernas

Por Manuela Degerine, de Lisboa
correiodobrasil.com.br

O jornal “Charlie Hebdo” foi fundado em 1970 e tem combatido – com humor – os tabus, a estupidez e a demagogia. Para os franceses o título evoca um grupo de criadores que vai de Cavanna, Reiser, Cabu (assassinado) a Charb, Honoré e Wolinski (igualmente assassinados), figuras lendárias pelo inconformismo, pela irreverência, pela intransigência. Pela coragem. Pelo civismo. Pelo humanismo. (Bernard Maris – também ele assassinado – representava a economia humanista.)
Quando foram mortos estavam a preparar uma edição do jornal contra o racismo… Cabu e Wolinski – entre outros: os fundadores – faziam parte da geração que se celebrizou em maio de 1968 e protagonizaram a liberdade sexual, a ecologia, o pacifismo, a generosidade, a fraternidade: o sonho de um mundo melhor.
Estes escritores, cronistas, caricaturistas têm-nos ajudado a pensar a vida, têm sido as nossas sirenes de alarme, têm encarnado a nossa rebeldia, têm alargado a minha e a vossa liberdade, também a vossa, sim, internautas portugueses: foram massacrados por representarem a nossa vontade de rir, de inventar, de questionar, de escrever e publicar.
Por isso tantos franceses têm manifestado a sua dor e a sua indignação: “Somos Charlie”. O que é assim muito fácil…
Como o filósofo Michel Onfray lembrou ontem numa entrevista a “France Inter”, há decénios que a esquerda cedeu à extrema direita o privilégio de refletir sobre a imigração, o islamismo, a diferença; à sua maneira. São consequências desta miopia que agora nos surgem pela frente…
Na sociedade dos anos 2000 predominam a autocensura e o politicamente correto; o que progressivamente isolou os resistentes de “Charlie Hebdo”. Toda a sociedade francesa se escondeu atrás da sua coragem e com ela se foi desculpando por não correr os mesmos riscos.
Não somos honestamente hoje “Charlie” por não termos reagido quando uma bomba explodiu na sede do jornal e quando uma canção explicitamente os condenou à morte… Lembram-se do poema de Bertolt Brecht?

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei
Não era negro.
A seguir levaram operários
Não me importei
Também não era operário.
Depois levaram vagabundos
Mas não me importei
Porque não era vagabundo.
Posteriormente levaram desempregados
Como tinha emprego
Continuei a não me importar.
Agora levam-me a mim
Mas já é tarde.
Como não me importei com ninguém,
Ninguém se importa comigo.

Os alvos e bodes expiatórios mudaram entretanto, quem hoje nos quer aniquilar não é nazi – cessemos de chamar nazismo a tudo e mais alguma coisa – por isso substituamos “negros”, “operários”, “vagabundos”, “desempregados”, que deixaram há muito de ser vítimas do totalitarismo, por “feministas”, “desenhadores”, “jornalistas”, “filósofos”, “realizadores” (por exemplo): o poema diz toda a estupidez da nossa cobardia. (A maioria dos políticos e intelectuais quer reparar a máquina com ferramentas de há cinquenta anos.)
Pouco conhecemos da religião muçulmana por os efeitos que ela produz nos seus crentes não incitarem à descoberta. Já viram/ouviram alguém de cultura muçulmana declarar-se publicamente ateu? Mesmo a religião muçulmana que pretende ser moderada se impõe através do medo que os islamistas inspiram, por consequência os seus cânones são burcas e nicabes, os seus adjuvantes de culto são punhais, explosivos e metralhadoras…
Sabem como se diz em francês “auto da fé”? Pois… “Autodafé”. Em português. E não nos podemos orgulhar disto. Apenas um exemplo: o dramaturgo António José da Silva, que escreveu “Guerras de Alecrim e Mangerona”, foi queimado na cidade de Lisboa em 1739.
A religião católica não era então mais libertária do que o islamismo hoje, porém a nossa sociedade – com coragem, obstinação, inteligência e muita luta – reduziu-lhe o poder. “Charlie Hebdo” foi atacado por associações de católicos integristas mas quando o combate se trava num tribunal não há perigo de vida.
A violência não nos forçará a trair três séculos de luta: de Voltaire a Onfray, dos direitos do homem ao controlo da natalidade, do respeito pela vida ao direito de usar minissaia…
Deixei de vestir saias – mesmo compridas – nos dois últimos liceus por os alunos muçulmanos me escarrarem para cima das pernas; o obscurantismo vai progredindo com estas pequenas cobardias. Com estas desistências. Mais valem mil escarretas do que a submissão: também quero ser Charlie.
Sabem qual é a prova de que somos fortes?… Não precisamos de metralhadoras.
Manuela Degerine,jornalista, escritora, nasceu em Lisboa, licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi professora em Queluz e em Macau. Ensina agora a língua portuguesa num liceu de Paris. Os romances por ela publicados: A curva do O , Lisboa, 1991, Jardins de Queluz, Lisboa, 1994; A Dúvida e o Riso, Lisboa, 1997, Uma Gota de Orvalho, Lisboa, 2000, O Peixe Sol,Lisboa, 2002. Em breve o seu novo romance Fado das Vidas Imperfeitas.
Direto da Redação é um fórum de debates, editado pelo jornalista Rui Martins.



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