sábado, 26 de janeiro de 2013

A prisão da pequenina Léa


Um dia destes, há muito pouco tempo, uma agente da polícia do município de Ustaritz, em França, entrou na escola de Saint Vincent, identificou a pequenina estudante Léa, que tem somente cinco anos, e levou-a para a esquadra vizinha onde a manteve durante algum tempo até lhe permitirem regressar às aulas, da parte da tarde, perante a estupefação de colegas, professores e director do estabelecimento. Razão da diligência: os pais de Léa devem 170 euros à cantina da escola, gerida pela Câmara de Ustaritz, e por isso o presidente do município ou “maire” proíbe a garota de almoçar no estabelecimento.
Passa-se isto na Europa das infindáveis virtudes, da interminável capacidade para julgar os outros, sobretudo quando se trata de direitos humanos e de liberdades cívicas, esta Europa farol inquestionável da democracia.
Nas aulas desse dia, os professores tentaram apagar o trauma gerado nas crianças, isto é, procuraram explicar o inexplicável porque na sua cada vez mais perseguida profissão (na Europa) ainda acontecem coisas para as quais não estão preparados; o director confessou aos jornais a revolta pela utilização de crianças como “reféns”; o pai de Léa quer saber quem se responsabiliza por um processo em que a sua filha foi levada da escola “manu militari”. O presidente da Câmara alegou que os pais de Léa foram notificados várias vezes da dívida associada à filha sem que tenham respondido pelo que, não o disse mas extrai-se da sua atitude, não havia outro remédio senão prender a garota, mesmo tendo cinco anos, para que eles dessem a cara indo busca-la à esquadra.
Se pensam que este caso é único na virtuosa Europa, uma ocasional manifestação de mentes perturbadas pelos inconvenientes que uma dívida de 170 euros provoca nos apertados orçamentos municipais, estão muito enganados. Também há pouco tempo, em Portugal, crianças foram proibidas de comer na cantina de uma escola porque os pais tinham dívidas que já somavam 60 euros. E voltando a França, agora à região de Yvellines, um “maire” admirador do ex-presidente Sarkozy manifestou vistas mais largas tentando prevenir em vez de ser obrigado a remediar: emitiu uma normativa que proíbe crianças que tenham pelo menos um dos progenitores desempregado de frequentar as cantinas e os centros de tempos livres das escolas do município. É o que se chama cortar o mal pela raiz. Antes a fome que as dívidas, antes o dinheiro que as pessoas, antes desempregados que caloteiros, quem não tem dinheiro não tem vícios, ainda que seja o de comer. O maior pecado que pode cometer-se no mundo que se considera o centro da civilização é, para que ninguém esqueça, faltar ao respeito ao dinheiro.
Como se não bastassem os cortes orçamentais na saúde e na educação nos países da União Europeia, como se não passe pela mente de governantes com cérebro de folha de Excel obrigar de novo a pagar o ensino público, como se a escola não fosse cada vez mais tratada como um luxo
com inerência discriminatória, então que se acrescentem a fome e as restrições económicas para que as crianças oriundas dos meios mais desfavorecidos deixem de vez o ensino, ainda que para tal tenham de passar pela esquadra e viver logo aos cinco anos a primeira experiência de potencial criminoso.
Pensemos no drama da pequena Léa. Não estamos já perante casos de má governação, injustiça ou estupidez burocrática. Somos vítimas de mentes transviadas que perderam o mais elementar senso de humanidade.
Jornal de Angola
ANGOLA24HORAS.COM

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