sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Os Templários (16). Estêvão Harding e a tradição hebraica


MICHEL LAMY

Podemos interrogar-nos quanto ao facto de saber quem foi, quanto ao fundo, a personagem mais importante para a constituição da Ordem do Templo: São Bernardo ou Estêvão Harding, abade de Cister, que congeminára tudo, desde o início, com Hugues de Champagne?

Inglês de origem, Estêvão Harding fora, inicialmente, monge no mosteiro de Sherbone. Depois, prosseguira estudos na Escócia e, em seguida, em Paris e em Roma. Marion Melville’ lembra o que dele dizia Guillaume de Malmes: Sabia casar o conhecimento das letras com a devoção; era cortês nas suas palavras, risonho no rosto: o seu espírito rejubilava sempre no Senhor. Depois de uma passagem por Molesmes, fundara Cister. Alguns anos mais tarde, tornara-se o seu terceiro abade.

Estêvão Harding acumulara quase todos os conhecimentos intelectuais que podiam adquirir-se nessa época. Reformou a liturgia e fez da sua abadia um centro cultural único. Empreendeu um trabalho gigantesco: a redação da Bíblia de Cister, com um espírito de correção crítica notável. Para o ajudarem, recorrera a sábios judeus. De acordo com as suas observações, mandou efecuar duzentas e noventa correções e cinco versículos completos de Samuel foram completamente reescritos. Findo isso, Estêvão Harding proibiu que se tocasse numa só palavra daquela Bíblia. Daniel Réju refere que uma personagem curiosa vivia então em Troyes: o rabino Salomon Rachi (1040-1105). Foi considerado o maior exegeta dos textos hebraicos e o principal comentador e intérprete do Talmude. Analisava sempre os textos a três níveis: literal, moral e alegórico.

É difícil saber se Estêvão Harding conheceu pessoalmente Rachi, dado que este morreu em Praga, em 1105. Em todo o caso, é bastante provável que os seus genros tenham vindo trabalhar para Cister, ao lado dos monges, para facilitar a tradução de documentos sagrados especialmente difíceis de interpretar.
por este meio indireto, os Templários beneficiaram de um apoio extremamente importante para a pesquisa que pareciam estar a levar a cabo no Ocidente.

São Bernardo partilhou, sem dúvida, o interesse de Estêvão Harding pelos textos hebraicos, embora as provas sejam escassas. Em todo o caso, ergueu-se muitas vezes contra as perseguições que os judeus tiveram de sofrer um pouco por toda a Europa. Fustigou os autores dos pogroms e manifestou bastante mais indulgência religiosa pelos judeus do que pelos cátaros. O concilio de Troyes: para uma regra feita à medida Claro que Estêvão Harding participou no concilio de Troyes, mas teria sido por qualquer coisa relacionada com a redação da regra? Isso é mais difícil de dizer.

Alguns quiseram ver nesse texto uma espécie de cópia das regras de vida observadas pelos Essênios, no tempo de Cristo. Mas que se sabia, no século XII, sobre esses Essênios que nos foram sobretudo revelados graças à descoberta dos manuscritos do mar Morto, em Qumran? Seriam veiculadas tradições a eles respeitantes nos meios judaizantes? Teriam os próprios Templários descoberto, por acaso, documentos essénios? Por certo temos de relegar isto para o campo das simples conjecturas.

Em todo o caso, o concilio de Troyes reuniu-se «no dia da festa do Senhor Santo Hilário, no ano da Encarnação de Jesus Cristo de 1128, ao nono ano do início da supramencionada cavalaria». A assembléia consular foi presidida pelo legado do papa: Mathieu d'Albano. Assistiram a ela os bispos de Sens, Reims, Chartres, Soissons, Paris, Troyes, Orléans, Auxerre, Meaux, Châlons-sur-Marne, Laon, Beauvais. Encontravam-se também presentes vários abades, entre os quais Estêvão Harding, é claro, e leigos como Thibaud de Champagne e o conde de Nevers. Entre todas estas personagens, algumas eram amigas de São Bernardo.

Logo no prólogo da regra, apercebemo-nos de que a publicidade da Ordem estava pronta para favorecer o seu progresso e que o conjunto se inseria num plano deliberado, em longo prazo. Pode ler-se: Falamos, em primeiro lugar, a todos quantos desprezam ir atrás das suas próprias vontades e desejam, com pura coragem, servir como cavalaria ao soberano-rei, e com um desvelo aplicado desejam vestir e vestem perpetuamente a muito nobre armadura da obediência. E, portanto, admoestamo-nos - a vós que haveis seguido, até agora, secular cavalaria na qual Jesus Cristo não tomou parte, mas que seguistes apenas por favor humano - a seguir aqueles que Deus escolheu da massa da perdição e ordenou, pela sua agradável piedade, para a defesa da Santa Igreja, e a que vos apresseis a juntar-vos a eles perpetuamente [ ...].
Hugues de Payns expôs, perante a douta assembléia, as necessidades da Ordem, tal como as concebia. Depois, o texto foi estudado e discutido, artigo após artigo. A regra latina que daí resultou compreendia setenta e dois artigos. Tudo, ou quase tudo, estava previsto nela: os deveres religiosos dos irmãos, os regulamentos que fixavam os atos quotidianos (refeições, distribuição de esmolas, vestes, armamento, etc.), as obrigações dos irmãos uns em relação aos outros, as relações hierárquicas...
A preocupação com o pormenor foi levada muito longe, dado que se decidia nela como seriam feitos os sapatos, como se cortariam os bigodes, o número de orações a recitar nesta ou naquela ocasião, etc.

Imagem: http://1.bp.blogspot.com/

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